Ângelo de Sousa
Drawings 1969 / Curated by Miguel Wandschneider |
04 Jun 2022 - 30 Jul 2022

Ângelo de Sousa raramente deu títulos às suas obras. Entre 1961 e 1966, usou “alcunhas”, como ele diz, para nomear as suas pinturas, ironizando assim a propósito da figuração e da representação, questões que nunca verdadeiramente lhe interessaram: “árvore”, “planta”, “ponte”, “cavalo”, “figura”, “natureza morta”. Uma das poucas excepções é um desenho sobre tela, de dimensões generosas, datado de 1970-71, a que chamou Catálogo de algumas formas ao alcance de todas as mãos. Trata-se de um inventário ou reportório de formas simples que ele usou num vasto conjunto de desenhos, na sua maioria realizados em 1969, alguns em 1970: cruzes, arcos, espirais, claves de fá, bolas, círculos concêntricos, entre outras.


Parte substancial desta exposição é composta por uma pequena selecção dos desenhos que Ângelo de Sousa realizou em 1969 – alguns não datados são referenciados, por aproximação, a esse ano. São, na sua maioria, desenhos em que a linha – melhor dizendo, a linha-cor enquanto unidade expressiva – assume todo o protagonismo na construção das composições. A exposição não se quis, e está muito longe de ser, representativa da diversidade da sua produção de desenho nesse ano. O seu título não deve, além do mais, ser entendido em sentido literal: nem todas as obras mostradas são desenhos, e nem todas datam de 1969. Um exemplo é o conjunto de quatro desenhos que abrem a exposição, mostrados na parede exterior da sala. No primeiro, datado de 7 de Novembro de 1971, o artista desenhou (escreveu) o seu primeiro nome; nos outros três, realizados dez dias depois, desenhou (escreveu) as seguintes palavras: quê, coisa, como. O que fazer? E como fazer? São esses os dois problemas fundamentais com que qualquer artista se depara. Já a palavra “coisa” parece referir-se à própria obra de arte, entendida, em primeiro lugar, e acima de tudo, pelas suas propriedades materiais específicas.


A este conjunto de quatro desenhos seguem-se, no alinhamento da exposição, duas pequenas pinturasdesenho, ambas de Setembro de 1967: a primeira é uma composição rítmica de linhas horizontais e de pontos; a segunda, uma trama de linhas diagonais intersectadas por linhas horizontais. Ângelo de Sousa realizou essas obras nas vésperas de partir para Londres com a sua mulher, Marina Mesquita, ela com uma bolsa da Fundação Calouste Gulbenkian, ele com uma bolsa do British Council. Durante os cerca de dez meses que viveu em Londres, interrompeu tanto a sua prática de escultura, muito prolífica nos anos de 1966 e 1967, como a de pintura. Foi um período de revigorante e regeneradora pausa criativa. De regresso ao Porto, retomou imediatamente o seu trabalho escultórico, dando início a uma nova família de esculturas, feitas com fitas de aço inoxidável, que foi produzindo, com alguma continuidade, até ao final de 1972. E pôs-se a fazer muitos desenhos em que brinca com a forma e com a cor, como se pode constatar nesta exposição.


Em Londres, Ângelo de Sousa viu muitos filmes experimentais no National Film Theatre, e decidiu fazer as suas primeiras experiências com uma câmara de pequeno formato (8 mm e Super 8). Numa dessas experiências, filmou a sua mão, em contraluz, assumindo diferentes posições e movimentos sobre um fundo em movimento de bandas verticais coloridas e translucidas. Alguns anos mais tarde, em 1976, ele voltou a usar a mão como “modelo”, desta vez em duas séries fotográficas e num filme em Super 8. E em 1998, revisitou aqueles filmes em dois vídeos (Ensaio para a mão esquerda e Scherzi) que tomam a mão como agente de uma coreografia de sombras. O pequeno filme em 8 e o vídeo Ensaio para a mão esquerda são projectados numa outra sala da galeria, estabelecendo um contraponto com os desenhos.


Não obstante os meios serem muito distintos, e os resultados formais muito diversos, o filme e o vídeo partilham fortes afinidades com os desenhos em termos do processo criativo: a rapidez de execução, o carácter imediato, a espontaneidade, a improvisação, o prazer da descoberta. Uns e outros obedecem a um princípio de economia – uso parcimonioso dos meios, simplicidade formal, contenção em termos expressivos – que sempre caracterizou a obra de Ângelo de Sousa.


Texto de Miguel Wandschneider



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