Gabriel Lima
Sunset Face |
05 Feb 2022 - 05 Mar 2022

Sunset Face, a nova exposição de pinturas de Gabriel Lima (São Paulo, 1984), é composta por uma série de variações sobre uma mesma imagem: uma figura de costas, talvez feminina, que contempla uma paisagem abstrata em que se destaca um corpo celeste , esférico e solitário, que poderia ser a lua, um asteróide ou o sol. Ao lado desta figura, na parte inferior, há um rosto em primeiro plano que olha diretamente para o observador e parece emergir de uma superfície fluida, mostrando e ocultando parte de seus traços, como se fossem os restos de um mosaico romano ou um espectro em uma parede. Esse rosto, também de gênero indeterminado, precede, na sequência do processo pictórico, a figura de costas.

Gabriel Lima cita essa referência aos mosaicos, juntamente com a ideia do palimpsesto, como dois elementos que o ajudaram a desenvolver conceitualmente a série, criada em 2021. Segundo o dicionário, um palimpsesto é um “manuscrito antigo que preserva vestígios de uma escrita anterior apagada artificialmente”. Neste caso, não se trata de textos desbotados, mas de imagens, como a face frontal. O ponto de partida desta investigação teve lugar na sua exposição Gladly (2018), que decorreu no espaço Uma Certa Falta de Coerência, no Porto. Foi esse espaço - um lugar sem qualquer tipo de conservação, quase ao ar livre, corroído pela humidade e em que a passagem do tempo se manifesta nas suas paredes descascadas através dos vestígios dos seus diferentes habitantes - que inspirou uma primeira pintura em que quase todos os elementos mencionados estavam presentes (exceto o corpo celeste ao fundo), que ele agora desenvolve através de uma série de variações.

As variações são interessantes porque permitiram a Lima não só compreender melhor aquela imagem original e desdobrar seu potencial, mas também dar ao seu projeto pictórico um caráter mais homogêneo. Uma das questões que chama a atenção na série, à qual alude o título da exposição, Sunset Face, é a relação que essas pinturas estabelecem com a representação de luz e sombra - talvez a questão mais essencial na história da pintura, figurativa e abstrata. Se olharmos de perto, veremos que são todas imagens noturnas, apesar de o tratamento ser ambíguo; o suficiente para deixar margem para dúvidas. Por isso, talvez, Lima ressalte que poderiam ser representações de “uma noite clara”, como aquelas madrugadas de lua cheia em que o pálido

reflexo de sol nos permite distinguir sombras, perfis e silhuetas no escuro. É durante a noite, aliás, que gostamos de olhar para o céu. Não só para contemplar as estrelas ou perceber a vastidão do universo, mas também porque é a única hora em que o resplendor do dia o permite. A noite é também, claro, o território dos sonhos e do onírico.

E o que a figura olhando para o céu contempla insistentemente, como se estivesse hipnotizada?

Corpos celestes; asteróides, em particular. Elementos atraídos para a terra pela força da gravidade.

Ceres, Pallas e Vesta, que dão títulos a três pinturas, são os nomes - vindos da mitologia grecoromana - dos três objetos celestes mais próximos da Terra. O maior, Ceres, é considerado um planeta anão apenas visível nas noites mais escuras. Considerada a partir desse ponto de vista, a série nos lembra a trama do filme Melancolia (2011), de Lars von Trier, que trata da colisão de um enorme planeta com a Terra. Uma das protagonistas, Justine, interpretada pela atriz Kirsten Dunst, é uma mulher que sofre de depressão. Paradoxalmente, é ela, entre todas as personagens, quem encara o apocalipse de forma mais serena, como se, na realidade, fosse um espetáculo estético tão belo quanto triste e inevitável.

As pinturas de Gabriel Lima transmitem um sentimento semelhante. Elas têm um caráter romântico e até certo ponto melancólico, que poderíamos vincular à tradição do sublime – a grandeza da beleza extrema (o universo, aqui) que leva o espectador a um êxtase além do racional. A figura voltada para trás e ensimesmada pode ser vista, nesse sentido, como um eco contemporâneo dos personagens solitários das pinturas de C. D. Friedrich, que contemplam paisagens espirituais de tirar o fôlego.

No caso de Lima, o romantismo é uma característica que deriva tanto do título - que, pela referência ao pôr do sol, remete a uma tradição poética crepuscular e escatológica, relacionada ao fim dos tempos - quanto de sua atmosfera noturna e seleção cromática em que o verde esmeralda e o azul ultramarino predominam sobre as camadas anteriores de tons quentes mudos: amarelo, ocre, terra, rosa e cinza. Junto com estas, estão algumas pinturas com cores mais fortes, mais quentes e mais brilhantes - amarelo, terra, laranja.

Estes tons criam um contraste com os anteriores - aquáticos, oceânicos - mas não deixam de representar uma cena que poderia prenunciar a destruição do planeta, talvez com um tom mais caótico, fraturado, convulsionado, metamórfico, como o de um terremoto, ou a erupção de um vulcão como o que criou as ruínas arqueológicas de Pompeia.

Essas sensações são acentuadas no espaço que Lima escolheu para apresentar esta série de pinturas em pequeno formato; uma espécie de gruta, escura e construída em pedra, que contrasta com o resto da galeria - um “cubo branco” sem maculas. Neste espaço, que, aliás, assemelha-se ao de Uma Certa Falta de Coerência, o espectador se depara com o jogo de olhares interiores e exteriores que as obras lançam.

Não sabemos se o rosto virado para fora é o mesmo da figura de costas - uma espécie de Janus de dupla face, para continuar com as referências mitológicas - uma tatuagem que cobre as costas, um auto-retrato do artista ou talvez uma representação mais abstrata e fugidia que funciona como um espelho. A pintura é usada nesta série como um meio capaz de levar luz onde esta está ausente, assim como representar uma dupla força gravitacional, literal e metafórica; a dos corpos celestes que se atraem entre si, por um lado, e da tensão gerada entre a percepção do espectador, a representação e o mundo exterior; ntre a realidade e a imaginação


Pedro de Llano Neira, 2022


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