Uma conversa por ouvir
Imaginemos uma casa. Para facilitar, uma casa dos anos vinte ou trinta daquele esplendoroso modernismo belga. Património cultural, portanto. Com esta idade, foi estudada, analisada, comentada e inúmeras vezes fotografada.
Conhecemos o arquiteto, os clientes que a encomendaram, a implantação no terreno, a planta, o modo como as janelas distribuem a luz, os magníficos detalhes nos elementos decorativos (espelhos, maçanetas, vitrais e outros), sabemos até como foi a decoração dos primeiros habitantes, gente de bom gosto com pintura arriscada e aqui e ali algumas peças art déco de inegável gosto.
Classificada, arrumada nas gavetas da história da arte, passou a ser uma entre muitas outras entidades indexais de um momento na história recente da evolução das formas. O que não sabemos é o que está por trás das paredes imaculadamente brancas. Nem quais os sobressaltos na sua construção, as discussões entre arquitetos, empreiteiros e clientes. Nem os risos, as festas, as agruras, os choros e os gritos, os silêncios intermináveis que a preencheram.
Tudo isto a propósito das obras agora apresentadas por Javier Plácido. Ao contrário de parte infelizmente significativa da arte contemporânea, arrumada, classificável, autocomiserativa, amiúde arrogante na sua ignorância, os seus trabalhos são a história não contada das paredes daquela casa (e a arte que se leva demasiado a sério na sua previsibilidade é a casa, claro).
Não é a história que estas obras conformam. São as intra-histórias que verdadeiramente nos deveriam surpreender: os diálogos perdidos, as emoções vividas, os gestos que determinam a personalidade de um tempo vivido mas não dissecado.
A crueza é aqui determinante para uma sensação de eficácia. O modo de articulação entre as partes em cada uma das pinturas releva o experimentalismo primordial que é tessitura concetual assertiva. Materiais pobres ressoam na delicadeza de contrastes cromáticos e sobreposições intrigantes que não deixam de atrair os sentidos.
Javier Plácido sabe que a arte para ele é mais do que eloquência formal ou inteligência iscursiva. Pelo contrário, aquilo que procura é estabelecer um reverso da significação pela sua anulação. E o que se vê é ou não é. Mas sendo, é tão vital quanto as palavras que nunca ouviremos daquela casa.
Miguel von Hafe Pérez